ORÍKÌ ÒRÌṢÀ: CANÇÃO E POESIA ORAL IORUBANA NO BRASIL
3 A obra Orikí de Iara Rennó
Iara Rennó é cantora, compositora e poeta, com mais de 100 músicas gravadas por intérpretes como Elza Soares, Ney Matogrosso, Lia de Itamaracá, Gaby Amarantos, Jaloo, Ava Rocha e Virgínia Rodrigues. Graduada em letras e com livros publicados, Iara Rennó faz parte da família Espíndola e é uma das mais versáteis artistas contemporâneas, com vasta produção musical. Durante o curso de Letras na Universidade de São Paulo, iniciou a musicalização de trechos do livro Macunaíma – O Herói Sem Nenhum Caráter, um de seus mais belos trabalhos (RENNÓ, 2019). Com Orikí, Iara nos entrega uma obra magistral que nos conecta, por meio de diferentes tecnologias, às cosmopercepções africanas que regalam à vida o seu sentido sagrado profundo.
Fruto de um intenso trabalho de pesquisa de pouco mais de uma década, a obra Orikí é composta por 13 faixas que envolvem articulações poéticas e musicais plasmadas por aportes epistemológicos e conceitos que desafiam as escritas (canetas) e escutas (oralidade) de mãos e
ouvidos coloniais. O Quadro 1 sintetiza cada uma das faixas, os títulos, as traduções pertinentes, as musicalidades e as cosmologias poéticas associadas. Exceto pela faixa 10, todas as outras são composições autorais de Iara baseadas em orikí transcriados ou traduzidos por Antonio Risério, Silvio Lamenha, Síkírù Sàlámi e Pierre Verger (SÀLÁMI, 1990; 1991; RISÉRIO, 2012; VERGER, 2019).
Quadro 1. Faixas do álbum Oríkì de Iara Rennó.

O primeiro aspecto a ser notado nesta produção de Iara é como a artista transcria os Oríkì para alcançar uma outra linguagem (neo oríkì) que trabalha a poesia, a antropologia e a musicalidade de cada palavra dita. Ela traz uma poética subterrânea (RISÉRIO, 2012) atuando não apenas no espaço do texto, mas sobretudo na musicalidade conectada ao Novo Mundo6. Nesse sentido, as propostas de neo oríkì de Iara são inovadoras. Mais do que articular as tecnologias ancestrais costumeiras por meio de atabaques de tonalidades grave (Rum), médio (Rumpi) e agudo (Lé) — instrumentos que conectam, pela música e pela dança, mundos visíveis e invisíveis iorubanos nas comunidades de terreiros do Brasil — ela utiliza sons tecnológicos contemporâneos (trompete, bateria, guitarra, flauta, violão, piano, baixo, entre outros) para adentrar uma forma en(cantada) de dizer e oralizar as palavras carregadas de sentidos e de axé. Há, aí, uma subversão da oralidade, que traduz na escrita e na forma como cada nota se coloca nos ouvidos de quem as escuta. A oralidade passa a ser um sistema de comunicação diferente daquele articulado pela escrita, mas nem melhor e nem pior.
Além disso, as traduções feitas por Iara dos textos em iorubá para o português dão também outros sentidos de interpretação que passam por uma performatividade cujo corpo é livre das lógicas coloniais e que precisam chegar ao outro lado da margem colonial. Iara traz, em sua poética, uma forma alternativa de resistir para seguir existindo pulsante para além dos muros das comunidades de terreiros, mas como poemamúsicas, paridas ao Novo Mundo a partir do ventre dos navios negreiros, inscritas nos corpos das pessoas negras africanas que foram trazidas à força para essas terras e territórios (Brasil, Américas). Há, assim, em sua proposta, um diálogo permanente com o que traz, por exemplo, o livro Um defeito de cor (2006), de Ana Maria Gonçalves, que narra a história de uma negra africana idosa em busca de seu filho perdido no Brasil. Os neo oríkì de Iara poderiam assim embalar a narrativa histórica-literária de Ana Maria Gonçalves.
A obra de Iara é um siré7 epistemológico. Como se pode notar, a faixa 1 faz uma louvação a todos os òrìṣà. Os sons escolhidos embalam o tom solene, mas também respeitoso frente ao que cada orixá expressa no aiyé (terra). As faixas 2 a 5 trazem os orixás dos caminhos, da caça e das florestas. Exú, vale lembrar, tem potência filosófica na tradição iorubana, articulando a linguagem, as possibilidades das encruzilhadas epistêmicas. Há garantido na exuística preservada no siré a dinâmica da vida, porque Exú é movimento, o princípio primordial de tudo o que existe, o verbo primeiro. As faixas 6, 7 e 11 saúdam os orixás da família do barro, da terra. A faixa 8 destaca as narrativas relacionadas ao orixá Xangô, uma das mais destacadas e poderosas divindades das comunidades de terreiro, rei importante em Oyó, outra cidade emblemática da iorubalândia (OYO, 2020). As faixas 9, 10 e 12 saúdam as mulheres, as yabás das águas (Oxum e Iemanjá) e do vento (Iansã), o feminino e a matripotência na vida iorubá. E, por fim, a faixa 13 traz Oxalá, divindade importante na história de criação do mundo e das próprias escritas, o poder reprodutivo.





Em cada uma das canções de Iara temos, assim, uma transcriação literária que se inspira e recria os sentidos filosóficos da cosmologia africana iorubana que se baseia na recomposição de valores civilizatórios essenciais na diáspora a partir de ideias de africanidades. Esses valores ancestrais estão plasmados não apenas nas escritas, mas também nas oralidades que emanam das canções e cantigas, retroalimentadas por instrumentos tecnológicos contemporâneos, sem perder de vista a história de luta de cada um dos orixás, femininos e masculinos. Nesse processo, há um rompimento epistêmico com as binaridades impostas pelo sistema eurocêntrico, já que em cada cântico vivenciado nos terreiros por meio das palavras e dos instrumentos ancestrais há um outro jeito de perceber as questões de território, de gênero, de raça, de corpo, de música e de conhecer e saber, conectados à memória.
Do ponto de vista literário-musical, entendemos que a cosmologia iorubana manifestada nos oríkì òrìṣà é fundamental para a constituição do ser-sujeito negro. Trata-se de uma poesia musical preocupada com o outro em sua integralidade, que se expressa por meio da palavra, sem separação entre Natureza e Cultura como acontece nas lógicas modernas e poéticas da eurocentricidade. Além disso, o processo de escrita (da palavra) não se desarticula do ser-sendo no mundo, que é material, mas também ancestral. Há, nessas escritas, um senso de coletividade que os cânones hegemônicos não conseguem perceber. Iara nos convida assim a um siré literário musical que sempre esteve presente nos microterritórios negros da diáspora, com um pensar nagô (SODRE, 2017) todo próprio, amparado por um tempo ancestral dialético. Nas escritas iorubanas, a comunicação circular está na roda, num rito iniciático que garante poderes respeitosos e que se deslocam, com afeto, dos mais velhos para os mais novos, num círculo de linguagem que se retroalimenta dos mais novos para os mais velhos.
Os neo oríkì de Iara trazem vibrações sonoras do além-mar, que atravessaram o Atlântico Negro para habitar o corpo-musical-literário das Américas e, em particular, do Brasil, trazendo consigo um sentido encantatória agregador. Os sons do álbum Oríkì são danças de cada um dos orixás que, trazidos para a roda, revivem o passado e recontam as suas histórias. Trata-se assim de uma literatura comprometida com a própria existência, intrinsecamente identitária (SANTANA, 2020). E, nesse sentido, a palavra-oríkì é, portanto, dinâmica, movimento, ritmo, canto, corpo que pulsa e vibra energias encantadas. O silêncio é, ele mesmo, um som que perpassa mundos (in)visíveis. A palavra enseja uma corporeidade que dá sentido à cosmologia iorubá. A força da palavra dita reside e é transmitida no hálito de quem a enuncia.
Da mesma forma que as vibrações das palavras, os toques dos atabaques e dos corpos dançantes materializam realismos simbólicos para o mundo nagô-iorubá. E, nessa dança das palavras, as vibrações tecnológicas das composições neo oríkì de Iara trazem outros sentidos simbólicos para a travessia transatlântica. É nesse sentido que talvez possamos afirmar que o nosso maior desafio na atualidade seja também permitir que essas novas categorias poéticas, plasmadas de inovações de linguagens, passem também a resistir não somente pelas lógicas das comunidades dos terreiros, mas também nos aquilombamentos criados nas universidades, principalmente nos cursos de Letras. Será preciso criarmos outros vínculos e elos de comunicação entre mundos (terreiro-univer-cidade) que soam e cantam desacoplados.