ORÍKÌ ÒRÌṢÀ: CANÇÃO E POESIA ORAL IORUBANA NO BRASIL

Alan Alves-Brito (UFRGS)

alan.brito@ufrgs.br


RESUMO: Oríkì é um dos gêneros literários iorubá-africanos mais difundidos no Brasil, especialmente o oríkì òrìṣà. No entanto, como parte do racismo linguístico e epistêmico, o seu potencial é pouco explorado nos cursos de Letras, no chão das escolas e dos espaços de promoção cultural. Os estudos linguísticos, literários, cancionistas e de tradução têm historicamente negligenciado os oríkì como importantes composições poéticas e musicais que traduzem filosofia e ontoepistemologia ancestrais. O nosso objetivo neste ensaio é destacar a importância da palavra escrita e da oralidade na construção desse corpo literário que tece memórias transatlânticas. Focamos a análise na obra Oríkì da multiartista Iara Rennó e, a partir dela, promovemos uma discussão sobre o gênero oríkì no Brasil, caracterizando-o como poesia oral iorubá cantada. As discussões são feitas com base nos conceitos de oralitura e ancestralidade. Ao longo do texto, são feitos apontamentos sobre como os oríkì podem contribuir para nos ajudar a pensar as tensões entre a modernidade e a tradição, construindo relações descolonizadoras entre a produção literária-cancional universitária (escrita) e aquela articulada nas comunidades de terreiro (oralidade). Esperamos contribuir com exemplos de cosmologias contra-hegemônicas que têm nos ajudado a forjar um projeto robusto de educação antirracista no Brasil.

PALAVRAS-CHAVE: iorubá; oriki; literatura; ancestralidade; racismo.


Exu matou um pássaro ontem com a pedra que só atirou hoje.

[Provérbio iorubano]

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1 Introdução

Entre as formas diversificadas de manifestação do racismo à brasileira1 (MUNANGA, 2019), o racismo linguístico (NASCIMENTO, 2019) e o racismo epistêmico (CARNEIRO, 2018) configuram-se, certamente, entre as mais perversas. A língua e as linguagens são formas primevas de dominação de mentes e de narrativas perpetradas pelos colonizadores sobre os colonizados. No caso particular do Brasil, a colonização portuguesa nos deixou o racismo estruturante (ALMEIDA, 2018) como um de seus legados. Como consequência imediata, os sistemas de conhecimentos de nossa sociedade, e em particular aqui nesse texto aqueles ligados aos estudos linguísticos, literários, cancionistas e de tradução precisam ser revisitados do ponto de vista cosmológico (filosófico), estético, ético, histórico, social e cultural.

Matrizes africanas, notadamente compostas pelos povos angola-banto, jêje-fon e nagô-iorubá (SANTOS, 2019; AYOH’OMIDIRE, 2020; LOPES, 2021; ALVES-BRITO; ALVES, 2022) contribuíram de forma marcante para a história e a cultura brasileira em todas as esferas do conhecimento. Os iorubá são encontrados basicamente em três países na África Ocidental: Nigéria, Daomé e Togo. E, obviamente, em muitos países das Américas após o perverso processo de escravidão. De acordo com Ayoh’Omidire (2020), os iorubanos são marcados, dentre outras, pelas seguintes características: (i) crença em Odùduwà como o mesmo herói fundador; (ii) crença na cidade de Ilé Ifè como cidade espiritual e berço da nação; (iii) crença em divindades denominadas orixás; (iv) crença em ancestrais denominados egúngún; (v)

utilização da língua iorubá em suas várias formas de expressão; (vi) utilização de diversificados gêneros literários no cotidiano; e (vii) utilização de marcas faciais (ilà ojú kíko). Há ainda características filosóficas bem marcadas e o caráter primordialmente urbano dos iorubá.

Historicamente, no entanto, com base no racismo científico2 que vigorou no país sobretudo nos séculos XIX e XX (MUNANGA, 2019), esses sistemas de conhecimentos ancestrais — na literatura, na música, na ciência, na tecnologia, na dança, na culinária, na religiosidade, entre outros — são desconsiderados, invisibilizados e tratados como pseudoconhecimentos. Argumentamos que, em certa medida, os efeitos do racismo científico persistem na contemporaneidade, pois o cânone literário e o musical são ainda articulados por essas ideias, o que parcialmente explica o fato de que muitas das contribuições negras são invisibilizadas, apagadas e subalternizadas, materializando o racismo epistêmico. Para Pereira (2013):

No tocante às textualidades de procedência africana e sua inserção na cartografia literária brasileira, a problemática é complexa, pois, se fizermos um recorte histórico do período colonial ao início do século XX, não será difícil perceber que, nas raras vezes em que foram tomados como “objeto literário”, tiveram que passar pelo filtro de uma visão eurocêntrica. Em função disso, deixou-se de levar em conta os recursos específicos de representação e de configuração estética de textualidades como os orikis, no caso do Candomblé, ou dos poemas rituais, no caso do Congado. Uma investigação de natureza multidisciplinar — envolvendo métodos da teoria da literatura, da etnografia, da linguística e da história — nos ajudará a compreender os vínculos dessas textualidades com as heranças e as reconfigurações estéticas geradas, a partir da diáspora africana, em diversas sociedades contemporâneas. A ampliação dos territórios de recepção dessas linguagens e das práticas culturais relacionadas a elas é uma decorrência dos sucessivos e prolongados processos de reivindicação política, levados a efeito por grupos e agentes excluídos das esferas sociais privilegiadas (PEREIRA, 2013, p. 72).

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Do ponto de vista musical, é inegável a contribuição das pessoas africanas para o que poderíamos denominar de Música Preta Brasileira3 (MPB) contemporânea. Já no século XVI, em 1549, o Lundu foi trazido ao Brasil por negros africanos e, numa mistura de ritmos com aqueles produzidos pelos indígenas, tranformou-se num ritmo afro-brasileiro (CALDAS, 2000). Desde então, o Brasil tem sido atravessado por um rico potencial musical que tem, na matriz africana, uma de suas grandes expressões identitárias, performando sentidos que se desdobram em múltiplas histórias sobre a construção do país. A formação da música no Brasil não está, portanto, desarticulada das outras esferas de poder que perpassam a naturalização do racismo. Por exemplo, para Fischer (1984, p. 207), “A experiência de um compositor nunca é puramente musical, mas pessoal e social, isto é, condicionada pelo período histórico em que ele vive e que o afeta de muitas maneiras”. E, nesse sentido, não podemos negar o poder da musicalidade negra como traço marcante da produção musical brasileira, bem sublinhada no tempo e no espaço (VELOSO, 1997), sem perder de vista as nuances relegadas ao presente pelo projeto Atlântico Negro (GILROY, 2001), que demarca o assombroso processo de escravização de pessoas negras que perdurou pelo menos quatro séculos no país.

Do ponto de vista literário, argumentamos no presente texto que o oríkì òrìṣà4, enquanto um gênero literário iorubá muito difundido na região denominada de iorubalândia (AYOH’OMIDIRE, 2020), trazido ao Brasil no final do século XIX por pessoas negras escravizadas oriundas da atual região da Nigéria, Daomé e Togo, no continente africano, deve também ser refletido no âmbito do que significa o racismo no Brasil. Pouco estudado e apreciado nos cursos de Letras do Brasil, o gênero oríkì representa uma preciosidade histórica e cultural do país, em que muitas das questões econômicas, políticas, sociais, culturais e cosmológicas dos povos iorubá (FILHO, 2023) estão materializadas nesse tipo de poesia oral, que foi ressignificada nos processos diaspóricos (AYOH’OMIDIRE, 2020; IDRISSOU, 2020). Muito ligada às comunidades de terreiro, a poética oríkì òrìṣà não é só religião; ela sintetiza cosmologia, filosofia, ontoepistemologia e sonoridade próprias que são subestimadas no que concerne o seu potencial epistêmico e literário (FREITAS, 2016; AYOH’OMIDIRE, 2020; IDRISSOU, 2020). Como já dissemos, trata-se de uma manobra do racismo que sustenta as estruturas do país, que busca evitar que os oríkì òrìṣà sejam recohecidos pela beleza e pela força ancestral de suas cosmopoéticas.

Focados na obra Oríkì, recentemente produzida pela artista brasileira Iara Rennó, apresentamos, assim, no presente texto, reflexões sobre a articulação do oríkì òrìṣà como uma das formas de se vivenciar a literatura iorubá musicalizada na contemporaneidade, corporalmente constituindo-se em neo oríkì òrìṣà. Há, assim, neste diálogo, um entrelaçamento harmônico entre literatura (poesia) e canções que nos trazem outros aparatos identitários e epistemológicos para nos ajudar a compreender a produção literária e cancionista no Brasil do século XXI. Embasados por pesquisadores e estudiosos do assunto (BARBER, 1991; RISÉRIO, 2012; FREITAS, 2016; AYOH’OMIDIRE, 2020; IDRISSOU, 2020), fazemos a discussão tendo como referência os códigos e as categorias colocados nos conceitos de oralitura de Leda Maria Martins e Félix Ayoh’Omidire (MARTINS, 2021; AYOH’OMIDIRE, 2020) e de ancestralidade (OLIVEIRA, 2021), os quais dão conta das propriedades intersemióticas e cosmossônicas dos gêneros literários iorubanos, suas cosmopercepções plasmadas não apenas no continente africano, mas também na Diáspora Atlântica Negra (GILROY, 2001; BUTLER; DOMINGUES, 2020). Trata-se, assim, de uma literatura-terreiro (FREITAS, 2016).

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2 Oríkì Òrìṣà

De origem iorubá, a palavra oríkì quer dizer saudar de forma especial (kì) a cabeça (orí). Conforme bem discutido na literatura, os iorubá concebem o mundo como formado por elementos físicos, humanos e espirituais. A cabeça, orí, é um dos elementos fundamentais que compõem a personalidade humana nesta cultura, que tem um oríkì para tudo e para todos (JAGUN, 2015; AYOH’OMIDIRE, 2020).

A antropóloga culturalista inglesa Karín Barber é uma das grandes referências nos estudos sobre os oríkì. No Brasil, como parte da resistência das comunidades de terreiros, a palavra oríkì chegou à contemporaneidade e passou a ser mais difundida a partir dos anos 1960, com os trabalhos de artistas, pensadores e praticantes de cultos ligados às religiões de matriz africana, como Silvio Lamenha, Síkírù Sàlámi e Pierre Verger (SÀLÁMI, 1990; 1991; RISÉRIO, 20125; VERGER, 2019). Mais recentemente, Ayoh’Omidire (2020) nos brindou com um amplo e profundo trabalho sobre os estudos iorubanos na relação com a diáspora afro-baiana, em que ressalta elementos da música, da religião, do cinema, da literatura, de obras de arte, dos blocos de carnaval, dos espaços urbanos e da arquitetura baiana conectados com a identidade iorubá, processo que ele denomina de iorubaianidade. Em particular, Ayoh’Omidire (2020) reverbera e amplia o conceito de neo oríkì (RISÉRIO, 2012), amplamente difundido na música popular brasileira por artistas consagrados como, entre outros, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Dorival Caymmi.

Segundo Ayoh’Omidire (2020), os oríkì expressam orgulho e levantam a autoestima dos povos iorubanos. Entre os tipos de oríkì, destacam-se, segundo ele: (i) oríkì ṣòkí (nomes carinhosos dados aos filhos); (ii) oríkì ìnagije (de uso pessoal, nome que a pessoa ganha ao nascer baseado em suas características); (iii) oríkì ìdílé (texto extenso, partilhado por membros da família que dividem a mesma origem ancestral); (iv) oríkì orílè (ligação aos clãs, não se limita às famílias por laços sanguíneos); (v) oríkì ìlú (síntese das histórias das cidades iorubanas); (vi) oríkì jantírere (extenso, sobre a vida de cada iorubano, no contexto do legado patrimonial); e, por último, o (vi) oríkì òrìṣà (exaltação da força ancestral dos orixás).

Como a palavra orí está presente em outros vocábulos da língua iorubá — ori/n (cantiga), ori/xá (senhor de nossa cabeça) e orí/kì (poemas de saudação ou evocação) — o gênero oríkì trata-se, assim, de um sistema fundamental que tem transmitido, por séculos, conceitos, preceitos, valores civilizatórios ancestrais, tecnologias e performances, baseado na ideia de preservação da memória coletiva para o fortalecimento da autoestima e construção crítica da identidade, fugindo das ideias limitantes das teorias e das críticas literárias hegemônicas.

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Na diáspora brasileira, as histórias dos orixás iorubanos, entendidas como um complexo sistema mitológico e literário (FREITAS, 2016), têm moldado as relações de poder das comunidades de terreiros e, pouco a pouco, têm adentrado os mundos arquitetônicos, psicanalíticos, musicais, poéticos, teatrais, performáticos, educacionais e literários. Os cânticos litúrgicos (oríkì) e as histórias (itans) en(canta)dos, en(toados) e oralmente postos criam uma forte relação entre o sagrado e o profano do dia a dia. A palavra, nesse caso, é ela mesma um rito, sacralizada pela ritualística das cantigas e das falas. Ambas a poesia e a canção per(formam) o corpo enquanto território-pensamento que potencializa as identidades negras.

Os oríkì òrìṣà são muito populares nos terreiros de matriz africana e foi por meio deles, enquanto um corpo literário contra-hegemônico, que as pessoas escravizadas salvaguardaram e os seus descendentes salvaguardam o potencial literário e cancional (corpo) das tradições africanas expressas na afro-brasilidade nagô.

Na Bahia, Freitas (2016) acionou o conceito de iorubaianidade de Ayoh’Omidire (2020) para criar e discutir o que ele tem chamado de literatura-terreiro. Embora usada junto com a palavra terreiro, a literatura trabalhada não quer dizer que esteja restrita ao contexto dos terreiros e, muito menos, focada nas religiões de matriz africana em suas expressões etnográficas. Para Freitas (2016), a literatura-terreiro plasma-se e se expressa pela escrita desde o corpo, uma filosofia em movimento. Por meio desse conceito, o pesquisador aprofunda as formas pelas quais o oríkì, enquanto importante arcabouço literário, apresenta-se nas comunidades religiosas afro-baianas para trazer outros sentidos para a literatura brasileira. Vale lembrar que Castro (2022), como parte de um profundo programa de pesquisa que dura décadas, destaca o legado linguístico-cultural negro-africano de vários dos seus povos, incluindo o legado dos povos banto-iorubá. A pesquisadora lamenta, no entanto, em várias de suas entrevistas (CASTRO; GALINDO, 2022), a barreira que enfrentou ao longo dos anos para convencer os colegas acadêmicos (e não somente eles) sobre a importância de estudar as expressões das línguas africanas no Brasil no contexto universitário brasileiro. Uma vez mais vale lembrar que há, historicamente no país, um distanciamento entre o que acontece no terreiro (tratado como o locus dos pseudoconhecimentos) e na universidade (tratada como o locus do conhecimento válido). Paradoxalmente, os estudos sobre os terreiros marcam historicamente no país o início das investigações antropológicas (MUNANGA, 2019). De fato, desde o fim do século XIX até a atualidade, muito tem sido feito/dito sobre os oríkì òrìṣà do ponto de vista antropológico, visual, performático, mas pouco (ou quase nada) sobre o seu potencial literário e/ou musical (FREITAS, 2016; AYOH’OMIDIRE, 2020).

Desta forma, enfatizamos que os oríkì òrìṣà são, portanto, criados e recriados, cosmologicamente falando, nas comunidades de terreiro, vistas como microterritórios negros recriados para resistir aos colonizadores por meio da memória ancestral coletiva e do axé (força vital) dos orixás nos processos violentos da diáspora. A sacralidade é, nesse caso, responsável não apenas pela articulação da razão e das emoções, mas também pelo entendimento mais amplo do corpo enquanto território, espacialidade temporal fundante da matriz identitária das comunidades de terreiro.

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